Por João Pedro Machado e Souza:
Na obra literária A Arte da Guerra, escrito por volta do ano 500 a.C., o pensador chinês Sun Tzue aborda o conflito como um aspecto inseparável da civilização humana. Guerras e conflitos armados eclodem por muitas razões diferentes, desde religião até dinheiro, e devastam tanto os seres humanos quanto a vida selvagem. Porém, (não) pensamos na natureza por último. As atividades militares terrestres, aéreos e navais consomem grandes quantidades de recursos, cria emissões de CO2, destroem paisagens e habitats terrestres e marinhos, matam a vida selvagem, geram poluição tóxica e contaminação radiológica, química ou biotóxica, com efeitos diretos e indiretos que se repercutem ao longo das décadas1. Muitas ocorrem em locais sensíveis ecologicamente. Em 2009, cientistas relataram que mais de 80% dos principais conflitos armados entre 1950 e 2000 ocorreram diretamente em áreas de hotspots de biodiversidade2, áreas com alto número de espécies selvagens, mas com alto grau de ameaça. A ONU indica que mais de 40% dos conflitos armados internos nos últimos 60 anos foram alimentados pela exploração de recursos naturais, como madeira, ouro, petróleo e gás, ou pela sua escassez, como terra fértil e água, e essa tendência agravará com a mudança climática. Não por acaso, em 2001, a Assembleia Geral da ONU declarou 6 de novembro como o Dia Internacional para a Prevenção da Exploração do Meio Ambiente na Guerra e no Conflito Armado.
O impacto ambiental das guerras começa muito antes delas, com as instalações e bases militares, os exercícios militares de preparação e testes de armas. Entre 1945 e 2009, ao menos 2.000 bombas nucleares foram testadas por diferentes países3, uma média de 2,8 testes nucleares por mês, que deixaram um rastro radioativo na composição da atmosfera. Isso sem contar as inúmeras ogivas nucleares perdidas em incidentes conhecidos como "flechas partidas" que estão liberando material radioativo4. Pesquisa de 2010 mostrou que, entre 1985-1998, a Força Aérea dos Estados Unidos registrou 25.519 colisões entre aves e aeronaves militares5. Outro estudo avaliou 14 baleias encalhadas nas Ilhas Canárias após um exercício naval da OTAN realizado em 20026. As baleias apresentavam lesões de bolhas de gás e êmbolos de gordura em vários órgãos, sobretudo nos vasos sanguíneos, fígado e rins, associados à exposição ao sonar de frequência média.
As cicatrizes deixadas no ambiente natural são brutais e onipresentes. Exemplos históricos de impactos ambientais causados pelas guerras militares são vastos, alguns casos, a destruição ambiental é uma tática militar explícita. A II Guerra Mundial destruiu ecossistemas na Europa e nas ilhas do Pacífico. Nos Países Baixos, o exército alemão inundou terras agrícolas com água salgada numa tentativa de fazer com que o inimigo fosse derrotado pela fome, tornando 17% das terras agrícolas holandesas impróprias7. Estima-se que os EUA despejaram mais de cem mil toneladas de agrotóxicos desfolhante – agente laranja - para expor esconderijos inimigos nas selvas asiáticas, o que destruiu cerca de um milhão e 600 mil hectares de florestas no Vietnã e contaminou o solo, mesmo décadas depois. Além disso, elefantes foram bombardeados por helicópteros para evitar que guerrilheiros vietnamitas os usassem como animais de carga e meios de transporte8. Com o avanço tecnológico e poderio bélico intercontinental a escala da devastação ampliou. A poluição ambiental é uma questão particularmente especial. Na Guerra do Golfo, o exército iraquiano incendiou campos petrolíferos no Kuwait, causando a poluição do ar e a formação de chuva ácida, destruiu centenas de oleodutos de petróleo e lançou milhões de galões de petróleo no oceano7. A destruição da barragem de Kakhovka9 inundou grandes áreas da região de Kherson, na Ucrânia. O desastre atingiu indústrias de ferro e de outros metais pesados, refinarias de petróleo e postos de gasolina, armazéns de pesticidas para a agricultura local. A área afetada está agora sob risco de contaminação, desertificação e extinção de espécies.
Para não ficar somente nas guerras militares, a busca por controle, acesso e uso de recursos naturais e suas receitas é fator chave para financiar os esforços militares nos conflitos armados civis. A frequência dos conflitos civis armados é o maior responsável pelos declínios populacionais de grandes herbívoros selvagens nas áreas protegidas africanas de 1946 a 201010. O longo e sangrento conflito armado na República Democrática do Congo teve um efeito devastador sobre as populações de animais selvagens, que têm sido fonte de carne para combatentes, subsistência dos civis e lucro dos comerciantes. Entre as principais fontes de financiamento para os rebeldes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), na Colômbia, a mineração de ouro e extração de madeira resultou na poluição de rios e terras com mercúrio, e desmatamento11. Em Angola, as receitas da exploração diamantes e petróleo sustentam o esforço militar tanto do grupo rebelde quanto do governo12.
Os impactos de uma guerra podem permanecer mesmo após o fim dos conflitos. Em 2011, cientistas encontraram elevados níveis de cobre e chumbo no solo de certas áreas ao redor de Ypres, na Bélgica, associados às batalhas da Primeira Guerra Mundial13. O legado das duas grandes guerras também foi encontrado em outro estudo de 2022 em depósitos de munições e regiões marinhas na Alemanha, que revelou evidências de bioacumulação generalizada de compostos de munições, incluindo TNT, em uma cadeia alimentar marinha costeira14. Outro grave problema ecológico que permanece por décadas são minas terrestres e dispositivos explosivos não detonados. São entre 80 a 120 milhões de minas terrestres espalhadas por 90 países que continuam causando a restrição de acesso, perda de biodiversidade, perturbação do micro relevo, contaminação química e perda de produtividade15. A Guerra do Afeganistão provocou a perda de quase 95% das florestas em algumas localidades, o que resultou em consequências severas para os âmbitos social, ambiental e econômico, como frequentes desastres naturais, como enchentes e deslizamentos de terra8. No Sudão, a escassez de água e a perda constante de terras férteis foi agravada pela chegada de pessoas durante a guerra civil12. Além disso, há sérias consequências nos esforços para combater as mudanças climáticas, uma vez que toneladas de CO2 e outros gases destroem a camada de ozônio e os recursos e a atenção são desviados para o conflito em vez da ação climática.
O que os conflitos demonstram é o abismo que existe entre o investimento militar das nações e o realismo escancarado pelo drama humanitário e ecológico em várias regiões do mundo. Segundo o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), o gasto militar total mundial atingiu um recorde máximo de US$ 2,24 trilhões em 2022 ou 2,2% do PIB global16. De 1 a 5% da superfície da terra são áreas de treinamento militar17. Embora possa se argumentar que essas áreas contribuem para a conservação da biodiversidade, faltam dados confiáveis para garantir, por exemplo, se espécies de maior porte são mantidas a longo prazo. Segundo estimativa do Observatório de Conflitos e Meio Ambiente (CEOBS), os militares são responsáveis por 5,5% de todas as emissões de gases com efeito de estufa no planeta. Enquanto isso, o último relatório Nações Unidas "Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional 2022" estima que entre 691 e 783 milhões de pessoas (9,2% da população) no mundo enfrentam a fome. Paralelamente, os alarmantes relatórios e pesquisas que mostram as impressões digitais das atividades humanas nas alterações climáticas, não parece suficiente para sensibilizar os países ricos (e militarmente poderoso) para contribuir com as ações de conservação nos países pobres.
É natural não pensar em impactos ambientais diante das atrocidades, mas esse comportamento também exibe a pouca preocupação da sociedade com o meio ambiente. A transformação de territórios numa zona de desastre ecológico provocada pelas guerras e conflitos armados é perigosa e suicida. Assim como em outras catástrofes, as guerras abrem uma oportunidade de mudanças fundamentais em nossa atitude em relação à natureza e ao uso de recursos. Seria muito mais revolucionário o gradual desarmamento das nações e a pacificação dos povos, independente da perspectiva de mundo. É urgente colocar o meio ambiente na posição central ao invés da ganância e da dominação para garantir o futuro do nosso planeta e de todos os seres vivos que o habitam.
1 Lawrence, M. J., Stemberger, H. L., Zolderdo, A. J., Struthers, D. P., & Cooke, S. J. (2015). The effects of modern war and military activities on biodiversity and the environment. Environmental Reviews, 23(4), 443-460.
2 Hanson, T., Brooks, T. M., Da Fonseca, G. A., Hoffmann, M., Lamoreux, J. F., Machlis, G., ... & Pilgrim, J. D. (2009). Warfare in biodiversity hotspots. Conservation Biology, 23(3), 578-587.
5 Edward J. Zakrajsek, & John A. Bissonette. (2010). Ranking the risk of wildlife species hazardous to military aircraft. Wildlife Society Bulletin.
6 Jepson, P., Arbelo, M., Deaville, R. et al. (2003). Gas-bubble lesions in stranded cetaceans. Nature 425, 575–576.
7 Swintek, P. (2006). The Environmental Effects of War.
8 Dudley, J. P., Ginsberg, J. R., Plumptre, A. J., Hart, J. A., & Campos, L. C. (2002). Effects of war and civil strife on wildlife and wildlife habitats. Conservation Biology, 16(2), 319-329.
9 Navin Singh Khadka (2023). Como rompimento da barragem na Ucrânia ameaça meio ambiente e segurança alimentar no mundo. BBC News Brasil.
10 Daskin, J. H., & Pringle, R. M. (2018). Warfare and wildlife declines in Africa’s protected areas. Nature, 553(7688), 328-332.
11 Why we need to protect biodiversity from harmful effects of war and armed conflict. (2008). Programa das Nações Unidas para o Ambiente (UNEP).
12 From Conflict to Peacebuilding The Role of Natural Resources and the Environment. (2009). Programa das Nações Unidas para o Ambiente (UNEP).